Oi, tem alguém aí?
É que eu queria falar pra vocês que eu to um pouco preocupado com ela.
Ah, antes deixe que eu me apresente. Ou seria no plural? Acho mais adequado visto que somos uma dupla. Somos os pés dela.
Isso mesmo... os pés.
Mas deixa eu voltar ao assunto que me deixou preocupado. Hoje ela colocou o despertador pra mais cedo que o normal, quando o relógio tocou eu já me preparei pr’aquele tradicional espreguiço seguido de “só mais 5 minutinhos” quando ela pulou saltitante da cama. Você pensa que é fácil ser pé? Tive que despertar rápido para estar lá pra ela... Não ia ser bom o dia começar com um tombo.
Meio que cantarolando ela procurou alguma coisa na bolsa que eu não sei o que era. Vi que era um negócio retangular, pequeno, cabia na palma da mão... Ela seguiu pro banheiro, ligou a água fria, plugou esse negócio numa outra bugiganga e de repente uma música alta e animada tomou conta do ambiente. Enquanto o shampoo fazia espuma ela dava rodopios, pra passar o sabonete inventou poses, caras e bocas. Sabe, pés não são conhecidos por terem uma memória boa, mas eu realmente não conseguia lembrar que dia especial era hoje pra que ela estivesse tão animadinha.
Ainda enrolada na toalha e com os espelhos embaçados ela abriu a porta do banheiro e pos a se vestir ainda dançando.
Sabe, nós pés gostamos quando vocês dançam... faz uma massagenzinha gostosa, alonga pedaços nossos que vocês não usam com frequência. Nós não sabíamos o porquê, mas estávamos adorando aquela alegria toda.
Pois bem, ela abriu o armário de calças e logo fechou. Bem que nós estranhamos, dias alegres merecem vestidos. E lá foi ela pro armário de vestidos. 24 anos de convivência faz com que a conheçamos muito bem. Não precisamos nem dizer que os sapatos eram de salto alto.
O que eu estranhei foi depois de toda pronta ela voltar a abrir os armários. E especificamente uma gaveta que ela não abre quase nunca. Meia calça, collant... Ih, gente, será? Ela parecia escolher tudo com muito cuidado e foi colando umas peças na bolsa com extremo cuidado. Quando ela voltou pro armário de sapatos e foi em direção a caixa que estava lá no fundo... gelamos. Coitadinha, quase caiu com a súbita câimbra... Mas meu medo se mostrou acertado. Ela olhou pra caixa com muito cuidado e tirou de lá o par de sapatilhas pretas.
Não foi difícil juntar as peças... Collant e meia calça, sapatilhas e polainas... Ela tá planejando voltar a dançar! Sabe, nós não somos egoístas... ficamos muito felizes por ela pois sabemos o quanto ela gosta disso. Mas a verdade é que estamos com medo. Será que ela não percebe que estamos enferrujados? E se nós não correspondermos aos anseios dela? É bom que ela saiba que não sabemos mais dar piruetas e saut d’anjes, que uma ponta mais prolongada pode causar câimbras e dores no dia seguinte.
Estamos felizes por ela, mas estamos com medo de não corresponder. Tomara que nós não a decepcionemos. Mas... que comece o tal do “5, 6, 7, 8”.